Tropas Estelares

Já rolou um post sobre esse livro aqui, mas foda-se.

 

Em algum momento do futuro existe uma nova ordem social alicerçada sobre os restos mortais da nossa atual. Nessa sociedade, o direto a voto, a cidadania plena é um direito dado apenas a aqueles que cumpriram o serviço militar, que deixou de ser obrigatório. Esse direito não se estende nem mesmo aos militares em exercício, apenas os reformados podem votar e se candidatar a cargos públicos no atual sistema de federação que substituiu os estados soberanos de outrora.

Grande parte da população civil abriu mão desses direitos sem reclamar, visto que um direito imposto pode ganhar ares de dever injusto. Porém aos que procuram ser cidadãos, o serviço militar os recebe, não exatamente de portas abertas. Ao completar 18 anos, data que coincidia com o final de seus estudos, Juan Rico acompanha  o seu amigo Carl até a junta de alistamento. Fazer parte do exército era um sonho de Carl, mas não de Rico, nascido em berço de ouro e destinado a conduzir o império econômico da família. Porém o impulso da juventude é capaz de fazer os rapazes cometerem erros inimagináveis.

Rico nunca foi inteligente como Carl, então não lhe sobram muitas alternativas nas forças armadas. Pra ser sincero, o único caminho que lhe resta é entrar para a Infantaria Móvel, aqueles que realmente lutam a guerra, não apenas apertam botões como os outros. Também significa que ele vai acabar passando por um treinamento que leva a maioria dos homens (mulheres são talentosas demais pra serem bucha de canhão e acabam virando pilotos) a limites extremos, tanto físicos quanto mentais. A esmagadora  maioria não termina o treinamento para a infantaria móvel, ou é exonerado, ou acaba morrendo.

Todo esse treinamento desumano é justificado. Se a humanidade sempre guerreou entre si, não seria diferente quando entrasse em contato com outras civilizações através do espaço. E também é bom esquecer a guerra como a  conhecemos em termos de armamento. Cada soldado que entra em combate é equipado com um traje especial, capaz de ampliar força e velocidade, além de carregar uma quantidade absurda de armamento. A Infantaria Móvel não precisa de muitos soldados pois cada um deles vale um exército.

Quanto ao motivo da guerra, ele é quase sempre o mesmo: território. Sendo uma raça em expansão pelo universo conhecido, cada planeta colonizável é um planeta pelo qual vale a pena lutar. O problema é que o inimigo atual, uma raça inteligente (tem que ser inteligente para construir naves espaciais) muito semelhante às nossas aranhas, apelidadas de insetos possui força o suficiente para vencer essa guerra. Os insetos conhecidos são os operários, que nunca atacam, e os guerreiros, que atiram com suar armas e mutilam com a força de seus corpos mesmo estando gravemente feridos. O tipo de inimigo capaz de fazer um soldado pensar bem se fez a escolha certa ao se alistar.

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Repetindo a frase que usei ao discutir o livro com o Zweist pouco tempo atrás, eu posso não concordar em absolutamente nada escrito no campo ideológico por Robert A. Heilein neste livro, mas isso está longe de afetar a qualidade ou o meu divertimento ao lê-lo. Até mesmo os pontos que entram em conflito com a minha maneira de pensar são escritos de maneira tão clara que acaba sendo quase sedutor concordar com tais. Um livro que te faz pensar ou que pelo menos lhe deixa incomodado é uma obra que vale uma análise mais profunda.

Heinlein nesta obra acaba trazendo para a discussão uma série de pontos que sempre foram delicados, mas que hoje parecem até mais que no passado como a meritocracia, uma sociedade separada em castas, a relação crime e punição, o direito à cidadania não ser um direito universal, civismo e os valores morais militares sendo introduzidos em uma sociedade civil. É de se imaginar que uma obra dessas facilmente ganharia o status de polêmica e o seu autor receberia alcunhas um tanto quanto não desejadas, como a de militarista e até mesmo fascista.

Porém quando se analisa o conteúdo do livro antes mesmo de buscar julgá-lo, vemos que tais acusações são infundadas. A sociedade descrita por Heinlein em Tropas Estelares descambaria para um modelo fascista facilmente em nossa realidade, mas ela não se encontra aqui. As forças sociais funcionam nesse universo em uma maneira ideal, inalcançável. É reforçado em muitas partes que a conquista dos direitos se dá pelo mérito, mas diferente do nosso mundo, as oportunidades nessa sociedade são iguais para todos. É fácil constatar isso ao notar que, por exemplo, Rico e Carl estudam na mesma instituição de ensino, mesmo Rico sendo de uma família muito abastada e a de Carl ser de operários.

A desigualdade de renda existe no mundo de Tropas Estelares, em grande parte por conta de herança (o destino de Rico era continuar os negócios da família), porém nota-se que mesmo Carl pertencendo a uma família mais humilde, não lhe faltam recursos para ele ser o que quiser, visto sua genialidade em engenharia elétrica. Outro ponto importante e salientado muitas vezes é que essa sociedade alcançou um nível de igualdade plena entre sexo, cor, religião ou qualquer outra coisa que para nossa sociedade é usada como combustível para a segregação. Existem duas castas da sociedade apenas em Tropas Estelares, civis e militares, que não se entendem mas conseguem conviver um um sistema que funciona.

Quanto a parte militar, até mesmo as forças armadas descritas por Heinlein é utópica, citando como exemplos a pequena quantidade de oficiais, o fato de qualquer soldado raso poder alcançar postos altos (se você que não conhece o funcionamento do exército e acha que isso acontece hoje em dia, favor pesquisar as origens da gíria “pistolão”) e o fato de que até mesmo aos altos oficiais vão para o combate. Visto que o autor serviu na marinha americana de 1929 a 1934, alguns dos pontos levantados por ele no livro podem inclusive serem vistos como uma crítica um tanto ácida, mesmo que velada, às forças armadas.

Uma parte que pode incomodar os leitores de esquerda são as ridicularizações ao comunismo, sendo mais exato ao regime Stalinista. Só que algo que muitas vezes esquecemos (inclusive a galera da direita) é que o espectro político de esquerda engloba um série de correntes de pensamento que, apesar de possuírem pontos chave em comum, são bastante divergentes, a ponto de muitas vezes na história terem partido pra porrada entre si. O fato de Heinlein ser um crítico do modelo soviético não o transforma necessariamente em um fascista, essa ideia inclusive cai por terra nas últimas páginas da publicação, em uma parte do extra que narra o envolvimento político de Heinlein em um partido político americano de cunho socialista.

Saindo da discussão filosófica e voltando ao livro, a narrativa pode parecer um tanto cheia de informação e apressada nas primeiras páginas, mas esse impressão não dura por muito tempo. De repente o livro te prende de maneira irreversível. Um dos pontos acertados é a descrição na medida certa, muitas vezes deixada de lado por autores que se empolgam demais com detalhes fúteis. A concepção dos trajes de batalha é sensacional, na verdade eu não me lembro de uma armadura inteligente ser tão poderosa. Em determinado momento do livro é dito que Rico sozinho é responsável por guardar uma área de 27km de largura por 64km de profundidade, isso sem contar no arsenal que chega a incluir de mísseis termo guiados a pequenas bombas nucleares.

Quanto à publicação, nada de novo a dizer, apenas a Aleph entregando um material gráfico de primeira, com uma bela arte de capa por sinal. Na parte de extras, como de praxe, temos uma entrevista com dois historiadores franceses, autores de um livro analisando toda a obra de Heinlein realizada em 2007, data que marca o centenário de nascimento do autor, falecido em 1988, um ano antes de ver uma de suas profecias serem concretizadas, que foi o fim da União Soviética. Que se interessou, o livro se encontra com menos preço (pra variar) na Amazon, 26 pila. Você pode concordar ou discordar com as visões do autor, mas não vai conseguir passar ileso por esse livro.

Godoka
07/02/2017