Review Animal: WE3 Instinto de Sobrevivência

SEMPRE tema o gato!

Existe um sem número de HQs com mundos onde não existem humanos mas, sim, animais antropomórficos envolvidos nos mais diferentes enredos, como os animais samurais em Yojimbo de Stan Sakai ou o mundo noir de Blacksad de Juan Díaz Canales e Juanjo Guarnido. Claro que temos também histórias que se passam em nossa realidade mas onde tudo é narrado do ponto de vista dos animais, como no ótimo Os Leões de Bagdá, de Brian K. Vaughan e Niko Henrichon. Mas é aí que entra Gtrant Morrison…e se tratando deste sujeito, nada fica no “lugar comum”. E é dentro dessa proposta que entra WE3-Instinto de Sobrevivência, uma das mais belas, brutais e emocionantes HQs que já tive o prazer de ler.

 

WE3 narra a história de 3 animais, um cachorro chamado 1, um gato chamado 2 e um coelho chamado 3, que fazem parte de um projeto militar que visa transformar animais em máquinas de guerra, acabando assim com as guerras convencionais e as perdas de vidas humanas. Para  tal, os três são colocados em armaduras projetadas especificamente para o porte de cada um e munidas de armamento pesado e avançado além de um (não tão) pequeno receptor acoplados aos seus crânios que os permitem se comunicar verbalmente, mesmo que de forma limitada, tendo em vista que são animais. Dentro da equipe, cada um tem uma função correspondente as suas “personalidades”. Assim sendo, o cão 1 é o líder e sua armadura é um pequeno tanque com o armamento mais pesado entre os 3, o gato 2 é o “assassino stealth” com uma armadura que o dá maior mobilidade  e munida de metralhadoras e lançadores de lâminas e o coelho 3 é o “especialista” em explosivo e minas terrestres. Aliás, uma curiosidade inútil: as fezes dos coelhos consistem em pequenas bolinhas, e uma das bombas que o 3 lança saí de um orifício que fica na parte traseira de sua armadura e em forma de…bola! Eu disse que era uma curiosidade inútil…

A trama começa após os 3 bichinhos serem usados com sucesso em uma “operação black ops” onde matam um perigoso traficante internacional e toda sua milicia. Com o sucesso da empreitada, o governo quer ampliar o WE3 (sigla para Weapon 3) para uma produção em massa o mais rápido possível. O grande problema é que os 3 bichinhos, antes de se tornarem eficientes máquinas de matar, eram apenas pets comuns que, aparentemente foram roubados de seus donos. Assim sendo o exército prefere começar o projeto condicionando animais desde seu nascimento afim de torná-los ainda mais eficientes e afastar as críticas da opinião pública, tendo em vista que tais animais seriam criados justamente para tal fim e não transformados, como aconteceu com os 3. Com isso, eles libertariam os 3 animaizinhos, certo? Errado! Julgando que os animais agora não passam de máquinas assassinas, além de potenciais provas de seus experimentos ilegais, e afim de executar uma completa queima de arquivo, é  ordenado que os 3 animais sejam sacrificados. No entanto, a doutora Roeanne Barry, responsável pelo treinamento e cuidado com os bichinhos, não concorda em nada com essa “solução” e ao invés de sacrificar os animais, tarefa cruelmente conferida a ela, resolve deixar com que eles fujam. E é o que eles fazem. E é então que começa uma caçada desesperada do exército que busca eliminar o 3 animais antes que sua existência venha a publico, enquanto os 3 bichinhos farão de tudo não apenas para sobreviver mas par garantir sua liberdade.

Oooown…não são as coisinhas mais lindas espalhando o caos, terror, destruição e morte ?

Grant Morrison é um filho da puta! O desgraçado sabe onde mexer pra te fazer se sentir mal! A história,que começa com uma cena de um assassinato brutal e mostra que os tais bichos são armas letais, logo dá uma guinada e te faz se apegar aos 3 protagonistas de um modo que você fica extremamente tenso sempre que o perigo se aproxima. E quem tem ou já teve um dos 3 bichinhos percebe que Morrison acertou em cheio na representação de cada um. O 1, como todo cachorro, é o mais preocupado com o bem estar de seus companheiros e sempre que faz algo errado, como MATAR ALGUÉM, ele fica se corroendo em remoroso, tal qual um cachorro comum quando faz bagunça e leva bronca, ou quando morde o próprio dono e percebe que foi longe demais. O 2, meu personagem favorito, é o tipico gato! Independente e mal humorado grande parte do tempo, também tem toda uma preocupação com os seus companheiros. É o mais astuto e mais ciente da maldade dos homens, não confiando em ninguém e sempre repetindo que “o chefe feeede” (“chefe”, aqui, se referindo aos militares). Ah, e não a toa, é o mais temido entre os 3 justamente por ser o mais impiedoso e letal (quase um Wolverine)! E, por fim, temos o 3, representando como um coelhinho inocente e, justamente por essa inocência, acaba tomando algumas decisões até “burras”, que acabam colocando o trio em apuros. No entanto, é extremamente fiel ao seu grupo e fará tudo que puder para mantê-los seguros.

2 é um predador nato!

O roteiro, apesar de pegar no sentimental com força e de trazer um conceito “massavéio” legal pra caramba (animais fofinhos transformados em assassinos trajando armaduras tecnológicas…como não amar?) , é assumidamente o mais simples em se tratando de Grant Morrison. Aliás, o próprio roteirista confessa isso. Tudo porque sua intenção era se unir a Frank Quitely e deixar o desenhista brilhar enquanto desenvolvia, junto a Morrison, um novo conceito narrativo que ambos chamaram de “quadrinhos 3D”. Não, você não precisa colocar aqueles óculos de papelão com lentes de papel celofane azul e vermelho! O conceito de “quadrinhos 3D” adotados por ambos se refere ao fato de que eles queriam fazer a ação saltar da página com enquadramentos  o mais dinâmicos possíveis, mostrando a cena por vários ângulos ao mesmo tempo. Por exemplo, se um animal atira contra um carro cheio de militares, você vai ver a cena de fora enquanto pequenos “pop-ups” mostram o estrago que acontece dentro do veículo. E, olha…eles conseguiram!

Frank Quitely é um de meus desenhistas favoritos! E se muita gente se incomoda pelo fato de ele sempre desenhar seus personagens com caras feias, jamais poderão negar que de narrativa o sujeito entende. E WE3 é um show de criatividade e talento do desenhista escocês. Além da narrativa extremamente cinematográfica, de modo tal que parece o mais belo storyboard jamais produzido, o cara ainda consegue não apenas executar o tal conceito 3D como o faz de um modo memorável! Suas páginas resultam em belíssimos painéis, com destaque especial pra a cena onde o gato ataca um grupo de militares em que os quadrinhos “giram” em 180 graus, quase se tornando “portais” por onde o 2 salta ferozmente.

Outro fator a se aplaudir está nas emoções que os personagens nos passam. Como eu já disse, o roteiro do Morrison é simples mas está anos luz de ser simplório, ele te pega pelo coração e começa a torce-lo pouco a pouco, com alguns momentos de dar nó na garganta. Aí entra o Quitely e passa toda essa emoção do textual para o visual…e fica complicado não marejar os olhos. Se ele imprime uma mesquinhes aos cientistas e militares e um sentimento de culpa palpável a Dra. Barry, as coisas não ficam mais leves quando se trata dos 3 bichinhos. O olhar dos 3 e até suas expressões são convincentes de um modo tal que chega a ser incomodo não poder fazer nada por eles enquanto se lê. Dá vontade de colocar os 3 debaixo do braço e dizer “Foda-se essa merda, você agora são meus!”. E se isso não é um baita acerto, eu não sei o que mais é…

Oooown…olha essa carinha de quem quer MUITO te matar..que cuti, cuti…

A Panini lançou WE3 pela primeira vez em 2005, em uma edição em capa cartonada com 112 páginas ao preço de R$18,90. Eu não lembro nem de ter visto a cor desse material nas bancas caruaruenses. A HQ acabou ganhando uma reedição de luxo em 2012, dessa vez em capa dura, contando com 144 páginas, sendo 10 inéditas mais os extras, ao preço de R$45,00. Também não vi a cor dessa por aqui. Por um tempo ambas as edições só eram encontradas em sebos ou pelos Mercado Livre da vida, sempre a preços absurdos, sendo o mais barato R$80,00. Mas, graças ao bom Odin, a Panini decidiu republicar a edição de luxo este ano (2018, caso você esteja lendo isso no longínquo futuro) e pode ser facilmente encontrada com descontos que deixam essa maravilha ao alcance até dos mais desfavorecidos economicamente (leia-se “EU”). A edição de luxo da Panini está belíssima e os extras, apesar de curtos, são sensacionais, pois revelam muito do processo criativo tanto do Morrison quanto do Quitely. Ah, também é divertido ver o Morrison tentando convencer a sua editora que todo o conceito do “quadrinho 3D” iria funcionar, já que quando ele descrevia apenas verbalmente, parecia uma loucura danada…

Enfim, WE3- Instinto de Sobrevivência é uma das minhas HQs favoritas e que, de tempos em tempos, eu volto a ler e, ainda assim, sempre mantém o impacto tal qual na primeira vez. Violento, triste, poético…uma HQ que MERECE ser lida. Se faça este favor.

Nota: 10

 

PS: Engraçado que eu, assim como muita gente (inclusive em algumas resenhas que vi no YouTube) chamava a HQ de “Dáblio É Três”. No entanto, até o título tem uma sacada genial que só descobri tempos depois. Acontece que, como a história da a entender, o WE3 é a sigla para “Weapon 3”, e não está errado. Só que o título é um trocadilho duplo! WE3, em inglês, tanto pode ser lido como “We Three” que em português fica “Nós 3″, referência óbvia ao trio principal, como pode ser lido como ” We Free”, ou “Nós Livres” em português,  já que o “TH” é pronunciado com som de “F” na língua da Rainha. Eu tinha descoberto essa parte do “Nós Três” anos atrás mas só vim me dar conta do “Nós Livres” recentemente. Genial!

PS: Aos 45 do segundo tempo descobri essa tirinha SENSACIONAL baseada na HQ mas substituindo o trio original pelo Snoopy,  Woodstock e o Garfield.