Prazo Curto

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ghost

Quinze pra meia noite, o prazo vence amanhã. Amanhã à tarde pra ser exato. Não pode pedir outro adiamento para o editor, e também não pode, já que as contas estão todas atrasadas. Não uma ou duas, todas as contas. Pedir mais um empréstimo ao agiota seria começar a considerar as duas pernas quebradas a melhor das possibilidades futuras.

Além disso, aguentar mais uma noite na presença deles seria o fim do último resquício de sanidade que ainda o habita. Escutar suas patas rastejando pelas paredes, o cheiro de podridão, o ataque quase eminente a cada segundo pelas costas só pode levar a dois destinos: uma camisa de força ou os pulsos cortados na vertical no banheiro. O maior problema da camisa de força é que mesmo assim eles não iriam embora.

A única maneira de se ver livre (e continuar respirando) e colocando-os no papel.

Não era de todo o mal, pelo menos era o que repetia diariamente para si mesmo. Alguns livros de sucesso, premiações, uma boa casa e festas, tudo de certa forma era graças a eles. E daí se uma hora eles voltassem para que mais uma vez fossem imortalizados em um livro? Isso só significaria mais um best seller.Só que as coisas não são mais tão fáceis quanto eram no começo, o medo que o impulsionava foi se tornando cada vez mais desespero. Medo gera reações rápidas, o que faz a escrita fluir. Desespero não. Quando o medo não era mais o bastante o álcool começou a ajudar, mas a garrafa de uísque quase no final ao seu lado comprova o esgotamento dessa alternativa. Situações desesperadas demandam medidas desesperadas, mas a cocaína em seu atual estado seria arriscar (mais) uma overdose, e como já foi dito, o tempo está acabando.

A inspiração veio perto do final, quando se preparava para levantar, ir para a cama e não acordar nesse plano astral no dia seguinte. Ali, ao lado do armário estava um deles, um de seus mais odiados, com seu corpo segmentado como o de uma centopeia, patas descarnadas e uma cabeça que não passa de um amontoado de presas e olhos. Não estava sozinho, uma pobre alma estava sendo devorada aos poucos, membro por membro. Era assim quando eles apareciam, sua sensibilidade ao mundo invisível aos vivos era aguçada ao ponte de muitas vezes não saber quem à sua volta estavam vivos ou mortos. Muitas vezes só conseguia diferenciar na hora que um deles era ceifado por uma das criaturas e brutalizado diante dele. Brutalizar é a única palavra que lhe vem à mente para descrever algo que olhos humanos nunca deveriam ver. Geralmente davam um tratamento especial aos que aparentemente tinham tirado a própria vida, como se soubessem do seu plano de fuga.

Os primeiros parágrafos haviam surgido como mágica na tela à sua frente, podia sentir agora uma força além do que pode ser chamado de natural o impulsionando. Sempre impulsionando, nunca influenciando ou tomando controle, tinham que ser as suas palavras sendo colocadas ali, era parte do jogo. A força não era simplesmente aceita como a presença deles, mas bem vinda, afinal, de que outra maneira conseguiria escrever quase trezentas páginas em tão pouco tempo? É humanamente impossível. É sempre assim quando o prazo se aperta, e mesmo sabendo que quanto menos tempo tem e mais é impelido e ajudado a escrever, maior a sensação de ter sobrevivido por pouco a uma queda de avião, não conseguia simplesmente se policiar. Nunca esteve com o prazo tão apertado, e sabia que vomitar sangue pelos próximos dias (algo que havia virado um hábito) seria o menor dos efeitos colaterais.

Página cento e oitenta e dois, próximo ao começo do clímax, consegue imaginar o seu editor ligando dois dias depois de receber o rascunho, aquele misto de blasfêmias, acusações e elogios que indicam que ele gostou do que recebeu saindo do telefone e preenchendo seus ouvidos ainda anestesiados pela recente desconexão coma realidade. O que é realidade? Já teve provas físicas de que isso não é uma ilusão, acostumou seus amigos e familiares a nunca lhe darem animais de estimação pra não ter que remover as tripas espalhadas pela casa novamente. Esse  momento também era o mais perigoso, sabia que seus visitantes agora estaria mais fortes e insanos, e que se demonstrasse a menor intenção de pausar seu trabalho, seus restos só seriam removidos da casa com uma reforma.

Não se atrevia ao menos a olhar para o lado, os olhos permaneciam fixos na tela do computador. O suor descia por sua fronte, o caos estava instaurado ao seu redor. Algo acaba de se mover pela parede atrás do computador, não sabe dizer se era uma cauda ou um longo pescoço, não conseguiu reconhecer a face disforme que o encarou por alguns segundos, e está grato por isso. Os gritos são ensurdecedores, deixaram de ter qualquer aspecto humano pouco antes de terminar a página oitenta. O tempo lhe ensinou a sempre trabalhar usando sapatos fechados, de preferência botas, tudo para evitar o contato com o misto de excrementos, sangue e tripas que forravam o chão. Estava preso em um inferno particular, ninguém além dele podia ver ou ouvir, e se fosse mais uma vez bem sucedido tudo desapareceria sem deixar vestígios. Mesmo assim, ficou semanas jurando que era capaz se sentir o fedor impregnado em seus pés.

Duzentas e sessenta páginas escritas, acredita que precisa de mais umas oito para considerar o trabalho finalizado. Também tem certeza que já passou das sete da manhã, mas nenhuma luz entra pela janela. Sabe que não está na Terra, mas não se atreve a olhar, mesmo que brevemente, para a janela e ter uma confirmação de seu temor. Seus dedos doem, provavelmente não vai conseguir segurar nada pelos próximos dias sem entrar em uma espiral de dor, ter morfina em casa mais uma vez se mostra  uma decisão acertada. Trabalho terminado. Não tem forças para permanecer acordado quando o inferno se afasta lentamente da sua vida. Também não precisa se preocupar em enviar ou  salvar o trabalho, isso sempre acontece mesmo quando é tomado subitamente pela exaustão.

O telefone toca. É o seu editor, dessa vez blasfemando mais veementemente que de costume. Está realmente  empolgado, não consegue lembrar de alguma vez na qual ele mencionou uma projeção de vendas tão alta. Não consegue prestar atenção como deveria, a morfina está impedindo que as suas emoções venham à tona. Mais uma vez está agradecido pela presença da droga nas sua previsões. Porém nem ela tem lhe conferido sono por muito tempo, está preso, ainda digerindo as palavras que lhe foram ditas antes de desmaiar. Sempre avisam quando vão voltar, dessa vez o intervalo vai ser de sete meses. A cada vez  o intervalo se torna mais curto.