O Frouxo – Parte 2 (Final)

Situações desesperadoras exigem medidas desesperadas, nunca uma frase batida fez tanto sentido em sua vida. E ela ia ganhando mais força enquanto a repetia desesperadamente em sua cabeça ao andar pelas escuras e sujas ruas da parte mais violenta da cidade. Um de seus clientes do consultório de contabilidade tinha um negócio lá. Negócio, essa era a única palavra usada para descrever algo que não poderia ser detalhado, e que naquela parte da cidade geralmente envolvia drogas e prostituição. Ao fazer uma manobra para esconder o suado dinheirinho de seu cliente das mãos sujas do governo, o mesmo lhe prometeu ajudá-lo com o que ele precisasse, qualquer coisa mesmo. A pergunta vindo do calmo e aparentemente inocente senhor de meia idade espantou até mesmo aquele homem que havia manchado sua mãos com sangue alheio mais de uma vez.

“Me ajudaria mesmo se eu precisasse matar alguém?”

A resposta não foi imediata, nesse tipo de negócio nunca é, é sempre aquilo de “conheço um cara que conhece um cara”, o que realmente começou a desanimar Carlos até o ponto que a frase “simples, rápido e sem levantar suspeitas” surgiu. Entro no endereço indicado, onde um homem o aguardava. Apesar do rosto severo e sem nenhuma característica especial que fizesse sua fisionomia algo único, sabia que era ele. Não houve apresentações, troca de formalidades ou qualquer coisa que Carlos estivesse acostumado em seu mundo civilizado. Apenas a troca de mãos entre o dinheiro e um frasco pequeno com água escura. Antes de se levantar e  sair, as palavras do homem com rosto severo foram:

“Use todo o conteúdo do frasco, vai parecer um ataque cardíaco. O veneno não deixa nenhuma evidência nos exames post mortem.”

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O resto seria fácil. Era hábito de Judite tomar sempre uma taça ao fim da tarde. “Recomendações médicas” ela dizia, e era sempre Carlos que tinha que abrir a maldita garrafa, mesmo depois te ter comprado um saca rolhas especial que não precisava de nenhum esforço. Quase todo dia, ao chegar em casa, tinha qua abrir a garrafa de vinho, não importa o quão cansado, apertado ou até morrendo estivesse. Poderia morrer com os intestinos para fora de um corte na barriga ao chegar em casa, contanto que deixasse a porcaria da garrafa aberta. E se por acaso esquecesse, lá  vinha um sermão de como ele não se importava com a saúde dela, que ela tinha saúde frágil e que Deus iria puni-lo por ser negligente com sua amada esposa.

Ela nunca teve saúde frágil, muito pelo contrário. O mundo podia estar sucumbindo perante o retorno da Gripe Espanhola que ela estaria de pé pronta para ir na vigília de oração. Isso era só uma das suas armas de chantagem, quando a filha mais velha, e dois anos depois o caçula anunciou que iam se mudar para estudar fora, ela caiu de cama por uma semana. O médico a examinou nas duas vezes, nas duas vezes disse que não havia nada de errado em seu exame físico e nos exames laboratoriais que pediu e nas duas vezes lhe receitou apenas uns calmantes, que foram recusados as duas vezes com a justificativa de “eu não sou louca para tomar isso! Eu estou doente!”. Milagrosamente a doença sempre melhorava ao passo que as pessoas ao seu redor paravam de dar atenção aos acessos de choro e respiração acelerada.

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Mas tudo isso iria terminar, e de uma maneira melhor que esperava. Em alguns dias Judite iria ganhar o título de cidadã  honorária na Câmara Municipal da cidade. Ela nunca fez nada de produtivo em sua vida, a não ser que fofoca em quantidade abundante hoje em dia seja considerado como algo produtivo. Mas uma filha de uma das senhoras do grupo de estudos bíblicos havia se elegido vereadora, o que na cabeça de Judite deu a ela o direito de coagir a mesma para ganhar o título. A ameaça de boatos sobre a infidelidade da moça (mesmo que infundados) ajudou também. Mas o Demônio nunca chegaria a ganhar a honra, iria morrer na véspera da nomeação de um ataque cardíaco fulminante que sua taça de  vinho diária não conseguiu prevenir.

Nos dias seguintes o mundo de Carlos pareceu ganhar nova cor, uma leveza e felicidade que não sentia há muito tempo, quase trinta e cinco anos. Seus amigos também notaram, seu sorriso fácil e bom humor contagiante, seus passos leves pelo corredor, sua disposição em cumprimentar e desejar bom dia a todos. Talvez esteja feliz pela nomeação da esposa, alguns pensavam, logo vai passar. E realmente passou, dois dias antes da nomação da sua esposa  ao título de Cidadã Honorária.

-Senhor Carlos?
– Pois não?
– Somos do Departamento de Polícia, o senhor poderia nos acompanhar até aquela sala fechada, temos uma notícia desagradável para lhe dar.

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“Descobriram o meu plano!”, foi seu primeiro pensamento. Porém não haviam provas, já que o frasco estava muito bem escondido em um imóvel desocupado da família, e também tinha tomado muito cuidado para não ser seguido no beco aquele dia. Mas, mesmo se fosse preso aquele dia, sairia ganhando. Seria um prêmio de consolação amargo, mas ainda assim estragaria o momento de triunfo de sua odiada esposa. Ainda bem que Carlos nunca quis ser detetive, pois suas suposições estavam longe do que realmente aconteceu.

Às três horas da tarde daquele dia o Departamento de Polícia recebeu uma ligação. Os vizinhos, ao escutarem um forte estrondo vindo da casa de Carlos, pediram ajuda pensando ser um ladrão. A dupla de policiais ao chegar no endereço não encontraram nada que sugerisse arrombamento, na verdade o arrombamento foi provocado pelos dois, após tocarem a campainha inúmeras vezes e não obterem resposta, mesmo com a TV dentro da residência ligada. Ao entrarem na casa, encontraram Judite ao pé da escada, deitada de cabeça para baixo e com o pescoço virado de uma maneira anatomicamente impossível. Estava morta. No meio das escada, uma enceradeira elétrica pendia segurada pelo fio da tomada plugada no segundo andar, dois degraus acima estava o pote de cera.

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Aparentemente a mulher escorregou em uma parte da algum degrau ainda com cera, quebrando o pescoço na queda. Carlos simplesmente odiava a alta frequência com que sua mulher encerava aqueles degraus.

Por falar em Carlos, ele não se lembra de muita coisa após o policial ter lhe dado a notícia. Seus colegas de trabalho, porém, se lembram da cena como se fosse ontem. Lembram do grito parecendo um uivo vindo da sala com a porta fechada, lembram-se dessa porta sendo aberta ferozmente e de Carlos, definitivamente fora de si, saindo por ela e destruindo o que via em seu caminho. Dentro da sala, um policial estava caído, nocauteado, o outro estava desesperadamente tentando tirar a arma de choque do cinto do parceiro. Naquele dia foram necessários sete homens para segurar Carlos até o policial desistir do plano A e partir para o plano B: botar o homem louco para dormir  com um golpe de cassetete.

A versão bonita, que todos contam e provavelmente acreditam, é que o homem que está há dois anos em uma cela acolchoada sem proferir uma única palavra, amarrado a maior parte do dia com uma camisa de força e atacando qualquer pessoa que ousa se aproximar é que Carlos enlouqueceu por perder sua grande paixão, pela qual foi plenamente dedicado por trinta e cinco anos de maneira tão rápida e banal. Que o trauma em seu coração afetou sua mente de maneira irreversível. Mas a verdade é mais suja do que se possa imaginar. No final ela, Judite O Demônio, prevaleceu sobre Carlos até em seu momento final.

O Frouxo enlouqueceu por não conseguir realizar o seu plano.

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Godoka
13/10/2015