O Frouxo – Parte 1

“Se eu não matá-la vou acabar ficando louco!”

Claro que essa frase não foi dita em voz alta, e nem poderia, pois estava no ambiente de trabalho. O que os seus colegas do escritório de contabilidade, um dos maiores da capital, pensariam dele. Justo ele, Carlos, o calmo e simpático contador, o empregado modelo que nunca atrasou para o seu expediente um dia sequer nesses 23 anos trabalhando na firma. Seria impossível vindo de uma pessoa como ele tal pensamento.

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E se ele por acaso tivesse falado em voz alta tal frase, de quem ele estaria falando? Da Judite, sua esposa desde os dezoito anos é que não poderia ser. Tudo bem que ninguém ali realmente conhecia de fato a mulher, apesar de um ou outro já terem falado sobre o sua “personalidade forte”. O fato é que Judite nunca compareceu a nenhuma reunião dos colegas de trabalho de seu marido, nem mesmo nas festas de final de ano. Carlos sempre estava presente nessas festas, mesmo que ficando por pouco tempo, geralmente indo embora após a revelação do amigo secreto. Sua justificativa era sempre a mesma: não era muito adepto de festas e comemorações.

Mas a verdade era justamente o que todos gostariam de negar, ele realmente estava prestes a pôr um fim na vida de sua esposa. Pôr um fim ao drama, aos sermões intermináveis sobre qualquer coisa que não a agradasse, de seus sapatos novos ao casal gay que morava a dois quarteirões de sua casa. Judite, o Pilar da Comunidade, era como suas amigas amargas e decrépitas da igreja a chamavam, mas ele tinha um apelido melhor, um que combinava perfeitamente depois de passar tantos anos ao seu lado: Judite, o Demônio.

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O pensamento que permeava sua cabeça nos últimos meses era sempre o mesmo, de que não tinha vivido a vida da maneira que se deve, de que apenas passou pelos anos abaixando sua cabeça e recebendo ordens de todos. Hoje, aos cinquenta e três anos, sabia que não queria terminar o  resto de sua vida assim, queria aproveitar os últimos anos de sua vida sendo livre, como nunca foi ou pelo menos não se lembra de ter sido algum dia.

Casou-se precocemente, aos dezoito anos. Foi obrigado a casar. O pai  de Judite o acusava de ter tirado a virgindade de sua inocente filha, que ela havia lhe confessado em prantos sobre o pecado cometido pelos dois. Isso seria impossível, a não ser que andar de mãos dadas por três vezes e em público significasse tirar a virgindade de uma donzela. O mal entendido ficou ainda pior quando Judite foi falar com ele, também em prantos, que havia inventado toda aquela história só para sair de casa, fugir das garras do pai que a espancava, e que estava disposta a tirar a sua própria vida se ele não casasse com ela para completar o seu plano de fuga. E foi a piedade de Carlos o seu passaporte para o inferno que nos dias de hoje estava completando trinta e cinco anos. O primeiro grande indício de que seria apenas um fantoche nas mãos de suas esposa surgiu na noite de núpcias, aos descobrir que ela realmente não era mais virgem.

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Os primeiros vinte anos foram os menos insuportáveis, e isso se deve aos filhos. Realmente amava aquelas crianças. Não importa qual fosse o problema, quais os mandos e desmandos do Demônio ou seus joguinhos emocionais e ataques histéricos, as crianças valiam a pena. E elas cresceram e se tornaram mais espertas que o pai, pois logo que puderam fizeram suas malas e saíram de casa para estudar fora e ter sua própria família. Elas também eram vítimas do jogo emocional de Judite, mas foram firmes, mesmos com as ameaças e prantos incontroláveis de sua mãe. Não é por acaso que eles mal os visitam durante o ano.

Quando as crianças foram embora, o fanatismo religioso se apoderou mais ainda do demônio. Missas e mais missas, doações para inúmeras obras da igreja feitas com o dinheiro de Carlos, pois “o dever da esposa segundo os olhos de Deus é cuidar do lar, por isso que essas meretrizes que trabalha fora de casa como homens irão arder no inferno!”. Aliás o inferno era o lugar favorito dela, adorava condenar todos que não gostava ou que não se encaixavam em seu padrão louco para lá. Tinha dias que Carlos tinha a nítida impressão de que se Judite morresse e fosse para o céu, Deus teria que ir pessoalmente pedir desculpas para Satã.

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Entre os poucas pessoas com bom senso que conviviam com o casal (na maioria das vezes eram obrigados a isso, pois eram vizinhos), Carlos também ganhara um apelido. Era chamado carinhosamente por eles de O Capacho. Ele acabou descobrindo o apelido, sentiu raiva no começo, mas depois pensou bem e se conformou. Sabia que estava além de qualquer defesa. Seria sempre Carlos O Frouxo até se libertar, o que seria em breve.

(Continua)

Godoka
05/10/2015