HQs Clássicas e Seus Hábitos peculiares- Parte 1

“Não é ruim! Você tem que ler no contexto da época!”

Todo mundo sabe que a Marvel iniciou seu universo nos anos 60 com a primeira edição de Quarteto Fantástico e, uns 30 anos antes, nascia o Superman de Jerry Siegel e Joe Shuster sem a pretensão de se tornar o ícone que é hoje. E com a explosão de coleções capa dura nas bancas (leia-se “Salvat e Eaglemoss”), ou com a iniciativa “Coleção Histórica Marvel”e “Lendas do universo DC”, é praticamente impossível que você não tenha lido pelo menos uma história deste período. São histórias que, sem sombra de dúvida, tem seu valor histórico, e não é difícil ler ou assistir reviews descrevendo muito desse material como “indispensável” , o famoso “se você é fã de quadrinhos ,você TEM que ler isso”. Mas…e se você ler e não gostar?

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É aí que começa a cruzada do “COMO VOCÊ NÃO GOSTA DISSO? É UM CLÁSSICO!” e aí você explica que achou a história chata, massante, cheia de textos redundantes e, por vezes, com desenhos feios. E aí vem eles de novo “AH, MAS VOCÊ TEM QUE LER COM A CABEÇA DA ÉPOCA! ERA ASSIM QUE ERA! ERAM OUTROS TEMPOS!” . Muitos leitores mais novos acabam acatando isso como lei de modo a não ir contra a corrente  e não se tornarem os “não entendedores de quadrinhos”. No entanto, se você é cachorro velho como eu, sabe que esse papo de “ler com a cabeça da época” nem sempre deixa algumas HQs menos chatas e sacrificiosas de se ler até o fim.

O caso é muito simples: As HQs de super-heróis foram criadas visando o público infanto-juvenil, isso é um fato! E o público infanto-juvenil dos anos 30,40,50,60 e 70 agiam como…crianças! Era uma época de inocência onde pré-adolescentes de 13 anos ainda se comportavam como crianças. Ninguém queria ser adulto antes da hora, como é tão comum nos dias de hoje. A vida adulta ainda estaria ali quando eles crescessem e a pressa para tal não era sua prioridade. Daí o fato das HQs de super-heróis terem uma inocência e uma linguagem mais simplória. O heróis eram heróis, os vilões eram vilões e tudo era preto no branco, sem as constantes áreas cinzentas tão comuns nas HQs atuais. E os leitores dessa época cresceram e muitos deles ingressaram na industria e se tornaram roteiristas e desenhistas. E suas cabeças foram mudando com o passar dos anos, com a chegada da vida adulta…e eles começaram a pegar todos os personagens que permearam sua infância e escrever e desenhar histórias que eles queriam ler com uma linguagem condizente com sua cabeça agora adulta.

O nome que me vem de imediato a mente enquanto escrevo isso é “Frank Miller”. O cara acompanhou o Batman  em sua fase mais “camp” na infância, mas deve ter lido as histórias mais “sombrias” dos primórdios do personagem, que tinham uma pegada mais pulp. Ele cresceu, virou adolescente, e viu Dennis O’Neil e Neal Adams trazerem, aos poucos, a aura dark do personagem de volta, ainda que não em sua totalidade. E Miller gostou do que viu. Certo dia, ele foi chamado para escrever o personagem e sua cabeça não era mais de um infante ou de um adolescente despreocupado. Ele havia visto coisas como a Guerra do Vietnam, a Guerra Fria, o Muro de Berlim entre muitas outras coisas. Sua cabeça agora tinha ideias muito distantes da inocência do seu tempo de infância e aquelas história não pareciam mais cabíveis para ele. Os quadrinhos agora precisavam refletir o mundo real e cruel que o cercava e que, por ser apenas um garoto, ele talvez não tivesse se dado conta na infância. Os quadrinhos precisavam ser um espelho da realidade, mas com pitadas do heroísmo de outrora, mostrando que ele talvez não funcionasse tão bem se os heróis permanecessem no mundo do preto no branco. E assim nascia O Cavaleiro das Trevas.

Entenda, isso não é uma biografia, eu não estou escrevendo algo que ouvi ou li em algum lugar ou sendo fiel a fatos. Isso é uma CONJECTURA, apenas para exemplificar o que creio que aconteceu com os quadrinhos através dos anos até chegar nessas sagas de nível cinematográfico que vemos hoje, com tramas cheias de mortes, traições, intrigas, conspirações governamentais e o escambau. Por “cinematográfico” não quero dizer necessariamente “melhores”, afinal, existem filmes ruins também…

A história do livro A Sedução dos Inocentes, de Frederic Wertham,  e toda a mudança nas HQs que ela causou  (o Batman feliz e sorridente que agia a luz do dia é o exemplo mais notável)  é algo amplamente conhecido. Os anos 70 marcariam a saída desse período de censura, com algumas HQs tocando em temas mais pesados, como as drogas nas HQs do Homem-Aranha e da dupla Lanterna Verde e Arqueiro Verde, e a supracitada volta do Batman a qualidade de Cavaleiro das  Trevas, ainda que trajando azul e cinza e com histórias ainda meio pastelão. Os anos 80 marcariam a fase das obras que redefiniram o modo de fazer quadrinhos, com o heróis humanos e falhos de Watchmen, o Batman sombrio e que ditaria o tom que seria levado pelo personagem até os dias de hoje em O Cavaleiro das Trevas, o Demolidor amargurado e com grandes questionamentos morais interiores devido a sua religiosidade na fase de Frank Miller, o Homem-Aranha saindo das histórias sempre bem humoradas para ser enterrado vivo em uma saga sombria em A Última Caçada de Kraven e os quadrinhos adultos surgindo na recém nascida linha Vertigo. Tudo isso  ainda dividindo espaço com “material de resistência” ainda bobo e com cara de anos 60, como Guerras Secretas e Lendas.

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E, como eu já disse, eram todos esses novos autores ( Alan Moore, Neil Gaiman, Frank Miller, Chris Claremont, John Byrne, Mark Waid, etc, etc, etc…) os leitores das tais HQs clássicas que tanto vemos hoje nos encadernados Salvat, Eaglemoss e Panini. Eram eles que se divertiam, se emocionavam, se impressionavam e ficavam atônitos com as tramas simples e até abobalhadas da época, pois eles eram crianças de uma época diferente.  E foram eles que, a partir do amor que nutriam por essas HQs mais simples, criaram verdadeiras epopeias cheias de profundidade e complexidade, mesmo que alguns tenham levado muitos dos hábitos das HQs clássicas para seus trabalhos, como a parte textual extensa e, por vezes, redundantes em excesso (beijo, Claremont).

Ei, Claremont...eu posso estar enganado, mas...acho que tem um desenho embaixo do seu texto...

Ei, Claremont…eu posso estar enganado, mas…acho que tem um desenho embaixo do seu texto…

Como todos já perceberam, este post ficou bem grandinho e serviu pra explicar como eu vejo a importância destas HQs clássicas em todo o cenário dos mundo dos quadrinhos. Foram elas que criaram muitos dos autores que tanto amamos (e até odiamos). E acho que também deixei claro que respeitar e gostar não precisam andar juntos. Você pode achar chato sim, sem medo de afirmar isso. O gosto é SEU, não se deixe influenciar por ninguém por que te chamam de feio, bobo e cara de melão se você não endeusar uma HQ do Demolidor enfrentando um maluco vestido de Oftalmologista! Bem, na segunda parte falarei, de fato, de todos os hábitos peculiares tão comuns nessas HQs, desde de desenhos anatomicamente nada corretos até dramaticidade nível novela mexicana. Então, a gente se vê lá!