Conto- Um último toque…

Um pequeno conto que escrevi tempos atrás e resolvi humildemente dividir com vocês

– Hellbolha.

Eram 3 da manhã e Jean acordou com os rotineiros passos na cozinha. O calor do mês de setembro cobrava seu preço, pago em gotas de suor que encharcavam seu travesseiro. A boca seca demandava um gole d’água. Jean levantou.

Ao abrir a porta, sua visão se perdeu no vazio da escuridão. Ainda tonteado pelo despertar súbito, cambaleou até a cozinha. De repente, ouviu os passos de novo. Parou. Tentou acostumar os olhos à profunda escuridão que o circundava. Cerrou os olhos com força e voltou a abri-los. Nada mudou. Continuou sua caminhada até a cozinha, agora com passos um pouco mais firmes, alertas e cuidadosos.

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Após percorrer os 5 metros como se fossem quilômetros, Jean finalmente chegara ao seu destino. Ainda cego, tateou a parede da cozinha em busca de um interruptor. Assim que o encontrou, com uma leve pressão sentiu a luz não só inundar o ambiente, como lhe açoitar os olhos. Piscou repetidas vezes na vã tentativa de apagar a mancha azul que agora lhe estampava as córneas.

O filtro borbulhou, como se desse as boas vindas a um convidado. Jean se aproximou, ainda esfregando os olhos, pegou um dos copos descartáveis no recipiente dependurado na parede e começou a enchê-lo. O garrafão de água borbulhava repetidamente, tal quem solta uma satisfeita gargalhada. O único som a cortar a madrugada silenciosa. Pelo menos até uma panela se revirar sobre pratos sujos na pia que ficava no cômodo seguinte. O jorrar da água cessou. O garrafão silenciou. Jean permaneceu imóvel…

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Cuidadoso, começou a dar lentos passos para trás. Esticou o pescoço até que seus olhos conseguissem ver parte do cômodo seguinte. Lá, em pé sob a meia luz proveniente da cozinha, uma figura de cabelos grisalhos permanecia imóvel, olhando pela janela que parecia uma tela negra salpicada de pontinhos de tinta reluzentes. Jean lembrou que sua mãe havia adquirido o hábito de olhar a cidade sempre que acordava durante a madrugada devido ao mal estar da quimioterapia. Ela dizia que cada ponto de luz era uma vida e que, mesmo em meio à escuridão, a vida sempre encontrava um jeito de brilhar. Isso a fazia se sentir menos sozinha durante as madrugadas, entre ânsias e insônias.

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Jean pousou o copo meio cheio sobre a mesa, sem ao menos tomar um único gole. Era como se seu corpo tivesse esquecido sua urgência de minutos atrás. Jean virou-se com cuidado, cada passo milimetricamente planejado para não causar o menor ruído. Olhou para a sala e viu a luz de seu quarto projetada sobre os móveis. Lançou seu corpo pelo corredor de modo que apenas seu braço ficara para trás, com o dedo indicador sobre o interruptor. Quando estava prestes a desligá-lo com a máxima cautela possível, sentiu quatro dedos pousarem levemente sobre seu pulso. Uma voz sussurrante como uma fria brisa noturna lhe alcançou os ouvidos. “Boa noite, meu filho”, a voz lhe disse. Em resposta, apenas o “clic” do interruptor e a engolfante escuridão novamente. Jean deixou o braço cair lentamente e sentiu, um por um, os dedos escorregarem por sobre sua pele até que tivesse se desvencilhado de todos. Se pôs a andar até seu quarto, agora não mais tão lentamente, cada passo ganhava velocidade, ainda que contida.

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Seu único farol era a luz que emanava de seu quarto. Ao chegar no interior do aposento, Jean fechou a porta sem olhar para trás. Sentou-se na cama, suado, trêmulo… seus olhos marejaram quando segurou o pulso, ainda com a sensação gélida dos quatro dedos que ali pousaram. As lágrimas finalmente verteram. Jean lembrou do sofrimento da mãe desde o descobrimento do câncer até as árduas horas de tratamento que pareciam não surtir efeito. Lembrou de como prometeu não abandoná-la na hora mais escura até que ela estivesse em pé novamente. Lembrou de como quebrou essa promessa ao perceber que não suportava olhar para a sombra daquilo que um dia fora sua mãe. E lembrou, principalmente, da dor que sentiu quando negou a si próprio a chance de lhe dar um último adeus…