Conto do vigário: Querido Diário#1

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Querido diário.

Bem, não sei onde começar, em todos os meus 25 anos eu nunca me aventurei a escrever um diário. Não sei exatamente o motivo, acho que nunca tive a necessidade de extravasar sobre as coisas que aconteceram comigo, sempre mantive guardado para mim, e só para mim.

Tudo começou em 23 de agosto de 2016, o pior dia da minha vida. Até antes disso eu tinha certeza para onde minha vida ia seguir. Eu e Renata estávamos desempregados, queríamos morar juntos, e já havíamos planejado como seria quase toda nossa casa.

É meio embaraçoso falar isso, mas nosso passatempo era ir em lojas que vendiam móveis, eletrodomésticos, dentre outros utensílios de casa. Nós íamos a esse lugares e ficávamos imaginando como seria nossa casa, os armários, a nossa cama, a estante no quarto, o sofá vermelho na sala de frente da televisão, e uma poltrona, que sempre sonhei em ter, para sentar, relaxar, e ler. Quase toda nossa casa estava pronta em nossos pensamentos. Depois disso íamos para algum hipermercado e ficávamos conversando sobre comida, o que cozinharíamos juntos, as culinárias estrangeiras que iríamos a aprender a fazer juntos, e os temperos que usaríamos, mas… tudo isso tinha acabado, ela esta morta. O mundo tirou ela de mim, a única certeza na minha vida até aquele momento.

Os próximos dois meses foram muito difíceis, não saí da cama, dormia até as 3 da tarde, meu corpo doía, minha cabeça doía, minha alma doía. Meu aniversário estava se aproximando, minha mãe tentava me animar, dizia que ia chamar uns amigos, eu disse que não queria, eu queria ficar sozinho, é assim que eu resolvia sempre as coisas. Ela insistiu, eu disse não, ela continuou a insistir e eu gritei com ela. Brigamos feio, ela não tem culpa de forma alguma, eu fui um babaca que machucou uma das poucas pessoas do mundo que sempre se importou comigo. Dizem que algumas pessoas quando passam por momentos difíceis elas tendem a ser agressivas com aqueles que mais gostam e se importam. Eu nunca fiz isso na minha vida, essa foi a primeira e única vez, eu prometi a mim mesmo.

5 de novembro de 2016, faltava um dia para eu completar 25 anos. Passei muito mal, vomitei o dia inteiro, tive febre alta, e meu corpo parecia que ia entrar em colapso. Até então eu só tinha pequenas dores no corpo e na cabeça, mas aquilo era forte demais, nunca havia sentido nada parecido. Era sábado, minha mãe ia sair com meu padrasto, um bom homem, de bom coração, e fazia muito bem para a minha mãe. Por ela estar cheia de preocupação comigo, ela tentou cancelar o compromisso, não deixei, menti, disse que estava melhorando, ela não merecia passar por isso comigo, ela já tinha feito muito por mim, e ela merecia sair para se divertir.

Depois que ela saiu, fui no banheiro e vomitei, dessa vez havia sangue. Suspeitei que eu ia morrer, mas quer saber? Não importava, suicídio já havia passado pela minha cabeça mesmo, se eu morresse a minha dor ia acabar, eu não seria mais um peso na vida de ninguém, e apesar deu ser ateu e não acreditar em nenhum tipo de vida após a morte, eu tinha um pingo de esperança que a minha razão estava errada, e que eu iria me encontrar novamente com ela em algum lugar.

Tosse, tosse, tosse, e mais sangue, a meia-noite se aproximava, estava sem forças não conseguia levantar mais da cama, o chão do meu quarto tinha vômito misturado com sangue, e minha boca estava com um gosto amargo e terrível. 23 horas e 50 minutos, acho que eu vou morrer, meu corpo quase não consegue mais se mexer, vomitei perto do meu rosto, estou quase todo paralisado, tenho quase certeza que vou morrer. Não sei o que é isso, mas obrigado, eu não queria mais viver nesse mundo, nada estava dando certo e o amor da minha vida havia morrido. Não havia mais lugar naquele mundo para mim… 23 horas e 59 minutos, 1 segundo para a meia noite, e achei que ia fechar meus olhos para sempre.

Acordei, era de manhã, minha visão estava completamente embaçada, não conseguia ver nada, mas alguma coisa estava diferente, não parecia que eu estava no meu quarto, onde está meu computador?
Levantei, me sentia esquisito, aquele quarto era enorme, fui ao banheiro. Tive a impressão que conhecia esse lugar, quase um dejavú, até que no banheiro olhei para o espelho, que ficava muito no alto, e vi… meu rosto havia mudado, era o rosto de quando eu era uma criança, olhei para o meu corpo, tudo era de criança, tudo! Comecei a rir, quando fico com medo começo a dar risada. Deve ser um sonho estranho, devo acordar logo. Não. Não era um sonho eu realmente estava no meu corpo de quando eu era criança, e estava na mesma casa que eu morei dos 6 aos 9 anos.
Diferente de agora, ou o que costumava ser o meu “agora”. Esta casa era muito grande, meu pai, que não falava comigo a anos, era de classe média alta, tinha uma empresa que faturava bastante, mas isso até antes dele falir, que anos depois descobri que foi a melhor coisa que já aconteceu comigo.

Não havia ninguém acordado, todos dormiam, devia ser umas 5 e 30 da manhã. Fiquei esperando acordar do sonho dentro do meu antigo quarto, mas não era um sonho, até que Catarina, a empregada doméstica que trabalhava em casa, e que eu gostava muito, veio me acordar. Ela ficou surpresa deu já estar acordado, e veio conversar comigo, respondi tentando ser o máximo “criança” possível, não sei se existe uma forma de se falar igual criança, mas bem, ela não suspeitou de nada. O tempo passou, vi minha mãe, ela estava muito mais nova, assim como a minha irmã, que devia ter uns 12 anos agora, e meu pai. Não consegui olhar muito para ele, apesar deu ter falado para mim mesmo que o perdoava, acho que parte de mim ainda guardava rancor.

Na escola foi estranho, vi meus velhos amigos, todos crianças, muitos deles eu sequer lembrava, e no “presente” não mantinha contato com ninguém. A maioria tinham se tornados “burguesinhos” mimados com tudo na mão, e como eu era diferente, um estudante de humanas e de esquerda, bem, só não nos falávamos mais. Mas como na época eu ainda era amigo deles, tentei me misturar, brincamos de pega a pega no intervalo, e foi legal. Existem coisas na infância que a gente sente falta.

Os dias foram passando, descobri que eu estava no ano de 1998, e tinha acabado de completar 7 anos. Eu continuava quieto, na minha bolha, não queria que ninguém descobrisse, iam me chamar de louco, falariam que eu estava com transtorno mental, só o fato deu escrever aqui e alguém ler já é me arriscar demais, mas uma coisa não parava de me empolgar, RENATA, ela estava viva.

Não tenho certeza, mas acho que no final de 1998 ela ainda morava no interior, droga, qual o nome mesmo da cidade? Minha memória sempre foi horrível com nomes e datas, eu lembro da cor dos olhos dela quando o sol refletia neles, no brilho de seus olhos, das pintas que ela tinha nas costas, e de como ela me abraçava forte e depois passava a mão em mim, mas que merda eu não consigo lembrar. Tudo o que sei é que em 2009 ela vai mudar para o bairro em que ela ainda morava antes de morrer, mas… faltam 11 anos para que esse dia chegasse, e se eu mudar alguma coisa no tempo, agora que minha consciência de 25 anos está no meu corpo de 7 anos. Eu assisti Efeito Borboleta muitas vezes para saber que uma pequena coisa que eu fizer pode mudar tudo para sempre. Isso que no filme ele fica apenas alguns minutos no passado e consegue fazer muitas cagadas, mas não, eu não quero voltar para o presente onde Renata não esta mais, eu quero continuar aqui em 1998.

Bem, já escrevi muitos páginas, querido diário, obrigado por me ouvir, vou para a minha festa de aniversário de 7 anos, depois volto para lhe contar mais.

Domingo, 8 de Novembro de 1998.

Um conto de Victor Zanellato.

Garibilbo
29/08/2016