Admirável Mundo Novo

Admirável terrível mundo novo.

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Em um futuro não muito distante, o consumo se tornou a nova religião. Tendo como principal pilar a figura profética de Henry Ford, nada que não seja para o bem da sociedade de consumo é tratado como herético. Todos são felizes, e a felicidade é algo imposto, de acordo com os novos  preceitos. Quando a felicidade não parece alcançável ou  quando os estresses do dia a dia parecem se abater sobre as pessoas, o milagroso Soma, um droga da felicidade potente, entra em ação como fuga e subterfúgio para as mentes de alto conhecimento técnico mas de emoções infantis.

Não existe mais monogamia, ou família, tais preceitos são vistos como fonte de infelicidade e, portanto, foram abolidos. A engenharia genética entrou no lugar da natureza, produzindo seres propositalmente superiores e inferiores, criando assim castas, onde os menos inteligentes (podendo ser quase débeis mentais simiescos) são induzidos hipnoticamente a serem felizes em servir os geneticamente mais abastados. Prazeres solitários e contato com a natureza também são mal vistos e desincentivados, pois além de não serem produtivos para a sociedade tabém são baratos, incapazes de gerar algum lucro.

Nem todos são felizes nessa sociedade, mas se sentem pressionados para parecer assim. Uma dessa figuras trágicas é o psicólogo Bernard Marx. Marx nunca se sentiu um igual entre os alfa, a casta mais proeminente dessa sociedade. Além de pensar de maneira diferente, algo parece ter dado errado em sua fertilização, o deixando mais baixo e com porte físico menos proeminente que os outros alfa, o deixando mais parecido com um beta ou até mesmo um detestável gama. Isso não passa despercebido aos outros, que tratam Bernard diferente. Outra característica social que incomoda tal figura trágica são as relações amorosas poligâmicas, ele simplesmente não consegue aceitar que sua paixão, Lenina Crowne, seja feliz por ser tratada como apenas uma pelos seus namorados.

Lenina é uma beta padrão, trabalha no centro de fecundação, é uma trabalhadora exemplar e nas folgas se diverte como uma criança, assim como manda a cartilha. É uma pessoa feliz, assim como todas a s outras, porém ultimamente anda tendo noções estranhas de monogamia com um de seus namorados. A fim de retirar tais pensamentos errados de sua cabeça, Lenina finalmente cede às investidas de Bernard e resolve viajar para o mesmo para um lugar conhecido como Reserva de Selvagens. A reserva é um local onde a civilização atual não tem influência, onde as pessoas envelhecem, adoecem e tem família, um local onde a religião ainda floresce fervorosamente. Em outras palavras, é um local simplesmente pavoroso para alguém civilizado.

Na reserva também vive uma figura diferente de seus semelhantes, uma figura jovem, bela e de cabelos dourados que atende pelo nome de John. John nasceu por uma acidente, um descuido de uma beta que foi abandonada na reserva, grávida (que palavra pavorosa!) de uma alfa, um verdadeiro escândalo. John cresceu isolado dos demais, era mais bonito, mais inteligente e tratado com desdém pelas outras crianças, muito disso devido o comportamento de sua mãe, vista pelas outras mulheres da reserva como uma prostituta por se comportar apenas da maneira que era o correto em sua sociedade. Apesar da lei afirmar que os habitantes da reserva nunca poderiam abandonar a reserva, John e sua mãe acabam ganhando um passe para a civilização graças à intervenção de Bernard, já que elas não são naturais daquele lugar.

O que poderia ser finalmente o passaporte para felicidade de John acaba se tornando uma completa viagem ao isolamento total. John é uma figura única, um ser entre dois mundos que não pertence a nenhum deles, uma pessoa fadada a permanecer eternamente sozinha, mesmo entre enormes multidões. Sua beleza e cultura não era bem vistas na reserva, e sua melancolia e sensibilidade não são bem vindas no seu novo lar. Se antes havia a promessa de que o mundo civilizado seria um paraíso onde ele não mais estaria sozinho, agora nem essa promessa existe mais, o que torna a sua vida uma das tragédias de Shakespeare presentes em seu livro velho, nem sempre compreendidas pela razão mas conhecidas pela emoção.

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Esse é um dos cinco livros que comprei de uma vez buscando me afastar um tempo da minha investida em ficção científica e romances históricos. Três já foram lidos, e este é o segundo a ser resenhado, visto que o primeiro foi Fahrenheit 451. Acho que eu nunca mais vou acertar tão em cheio em uma compra como acertei dessa vez. Haverá o tempo de abordar as outras leituras, vamos nos ater a Admirável Mundo Novo no momento.

O que mais me fascina em distopias é habilidades de certos autores em usarem hipérboles de situações do nosso cotidiano atual afim de criar um mundo absurdo e ao mesmo tempo real. Isso é fantástico e ao mesmo tempo perturbador. Esse livro foi escrito no início da década de 30, antes da doutrina de Adolf Hitler assolar a Europa e mudar drasticamente os rumos da história, mas mesmo assim muito da sociedade de hoje pode ser encontrada nas páginas dessa que é considerada a principal obra de Aldous Huxley.

Se Fahrenheit 451, mesmo com os devaneios consumistas, poderia ser considerada como uma crítica ao fascismo e autoritarismo, em Admirável Mundo Novo o alvo das críticas é exclusivamente o capitalismo. Mesmo que muitas das atitudes das figuras de autoridade do livro usam como desculpa o bem da comunidade, o seu objetivo é sempre o mesmo: manter o status quo de consumo, proteger o mercado de ruir. Por mais que esse seja um mantra da nossa sociedade atual (apesar dos fiéis negarem, capitalismo é a religião atual mais poderosa – comunismo é uma seita moribunda), no livro vemos as últimas consequências, onde os valores ditos mais imutáveis como família são deixados de lado para manter a roda do consumo girando.

Outro ponto importante presente é o sistema de castas, transformado aqui em algo imutável, deixando claro aquele pensamento de que existem pessoas que nasceram para servir enquanto outras nasceram para mandar. O que na nossa sociedade é demarcada pela posição social e bens, no livro é algo mais radical e imutável, como a genética, extinguindo também outra figura outra classe abominada pelas pessoas de bem que são os novos ricos, que na sociedade atual receba a alcunha e emergente. A fábula da meritocracia não é levada em consideração pois na época ela não existia, já que seu surgimento se deu na Revolução Maoísta e criação da Republica Popular da China.

Mas, descansado o meu lado vermelho por um tempo, vamos tratar do livro como simples obra literária, o que por si só já é algo fantástico. Fantástico e impactante como um soco na boca do estômago. Mesmo com John citando versos e mais versos das obras de Shakespeare, não espere romantização durante a leitura. Huxley escreveu uma obra maravilhosa, seca, direta e fatalista, características que estão presentes até o final, no qual eu precisei reler o último parágrafo mais de uma vez pra absorver o baque. Meu erro foi esperar romantização.

Independente de visão política, de concordar ou discordar com minhas opiniões quanto à visão do autor ou com a minha interpretação da mesma, digo que Admirável Mundo Novo é uma leitura obrigatória para qualquer pessoa que diz gostar de livros. Garanto uma experiência literária maravilhosa, e uma perda de fé na já tão abalada sociedade moderna.

Godoka
10/05/2017